Biografia


António Sérgio de Sousa (Damão, 3/9/1883 – Lisboa, 24/1/1969)


Vida. Ensaísta, crítico, pedagogo, historiador, político, sociólogo, filósofo, António Sérgio foi uma das mais vincadas vocações de pensador, ainda surgidas em Portugal. Descendente, pelo dois lados, de altas patentes da Marinha, aristocrata de estirpe e tendo passado a infância no Ultramar – na Índia e na África –, optou, naturalmente pela carreira da Armada, que abandonou, em 1910, pouco depois de proclamada a República. Como ele confessará mais tarde, a sua educação decorreu no mais completo agnosticismo religioso. Foi no encontro da geometria analítica de Decartes, quando estudante da Politécnica, que ele descobriu o seu poder «racionalista», ao qual, mais tarde, aporá, não sem razão, o qualificativo de «místico». O seu 1.º trabalho, redigido entre 1903 e 1908 e publicado neste último ano, intitula-se Notas sobre os Sonetos e as «Tendências» de Antero de Quental. Fundada por Álvaro Pinto em Dezembro de 1910, a revista A Águia, de onde surgirá, em 1912, o movimento de apoio, justificação e orientação ao novo regime, designado «Renascença Portuguesa» onde colaboraram os intelectuais mais significativos do tempo, António Sérgio contou-se entre os primeiros. Mais tarde, dada a orientação «saudosista» impressa à publicação e ao movimento por Teixeira de Pascoaes, António Sérgio abandonará um e outro, indo fundar a Pela Grei (1918) de onde irá sair, pouco depois, em 1921, a Seara Nova, que contará, não muito tempo volvido sobre o seu aparecimento, com a colaboração tão assídua quanto esclarecida e esclarecedora de António Sérgio. É nos primeiros anos 20 que ele fez parte, com Raul Proença, Jaime Cortesão, Afonso Lopes Vieira, José de Figueiredo, Aquilino Ribeiro, etc., do famoso «Grupo da Biblioteca Nacional», que se encontra na origem e desenvolvimento da revista Lusitânia. Em 1923, não sem uma certa dose de idealismo, aceitou fazer parte do ministério de Álvaro de Castro, na pasta da Instrução, onde se manteve apenas dois meses. Tendo-se interessado vivamente, desde 1910, pelos problemas da educação e da «reforma da mentalidade» e tendo apresentado, por escrito e em ensaios experimentados, várias propostas nesse duplo sentido, a escolha para o cargo era acertada. A generalidade dos políticos do tempo – com as excepções que só vinham confirmar a regra, mais do que as estruturas do regime, é que não permitia à espécie de homem que era António Sérgio levar a cabo ideias longamente amadurecidas e que já noutras latitudes tinham dado frutos. Foi esse malogro político, a par do conhecimento da ineficácia prática dos homens da I República, que conduziram o liberal e libérrimo António Sérgio a não alimentar pela ditadura esse horor mortis que tantos democratas, normalmente sentem. Para ele, porém, a ditadura devia ser progressiva e transitória. Como essas duas condições não se deram, após o 28.5.1926, António Sérgio colocou-se na oposição, tendo por isso de sofrer exílios – por vezes longos, cárceres, apreensões de livros, receios de publicar outros, ataques, calúnias, vexames. Promotor do cooperativismo de associação, ajudou a fundar várias unidades desse tipo. Consciente da necessidade – e da missão – de «reformador da mentalidade portuguesa» – várias vezes foi levado a intervir na vida pública, mesmo durante o regime do Estado Novo, em particular nos momentos de eleições. Homem coerente, morreu pobre como pobre tinha vivido. Religiosamente agnóstico mas tolerante sentindo poucas afinidades com o cristianismo, jamais opôs a sua mulher, D. Luísa, senhora muito católica, em actos e crenças, o mais leve obstáculo na prática da sua fé.

 

Pensamento e Obra. Legou-nos António Sérgio vastíssima obra, constando quase toda ela de ensaios – ou formais (8 vols.) ou materiais –, de traduções e de um avultado número de artigos da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira que, embora não assinados, o estilo acusa como sendo da sua lavra. O pensamento, que anima toda essa obra, arranca de determinados postulados de ordem epistemológica e ética a que António Sérgio se mantém habitualmente fiel. Esses postulados criam certos parâmetros dentro dos quais ele se move, sejam quais forem as matérias versadas – e tão vasto e vário foi o seu leque. Uns e outros se referem com frequência a grandes doutrinas da história cultural do Ocidente: o platonismo, o cristianismo, o cartesianismo, o kantismo, o neokantismo. Nesses diversos ismos distinguia António Sérgio o «real» e o «ideal», movendo-se a sua mente, clara e lúcida, em direcção a este último. A Razão e o Bem, estritamente unidos, representavam os dois grandes astros que lhe polarizaram o intelecto e a vontade, e a cuja luz, mesmo que o ardor polémico por vezes o cegasse, procurava julgar pessoas e factos, ideias e valores. Essas cegueiras momentâneas, embora algo frequentes, provinham do pendor do seu espírito: geométrico e nada dialéctico, dogmático no ponto de partida idealista – embora só nele –, apaixonado pelas evidências que se lhe empunham. É que havia em António Sérgio – coisa que ele descobrira em Antero, um dos seus grandes mestres – um ser diurno e um ser nocturno, ou, para usar a linguagem nietzschiana, Apolo e Dionísio. Habitualmente dominava Apolo, mas quando irrompia Dionísio a sua «ira» tornava-se implacável e demolidora. Foi assim nos ataques a Junqueiro e a A. Nobre, nas polémicas com C. Malheiro Dias a propósito de O desejado, com J. Maria Rodrigues e A. Lopes Vieira sobre Camões, com Cabral de Moncada, com António José Saraiva, etc. Era esse «ideal» apolíneo que António Sérgio defendia também, na organização da sociedade, através do cooperativismo de associação, na pedagogia, através do self-government, na escola, segundo o espírito inglês e segundo o modelo do americano Dewey, na estrutura política da Nação, através de órgãos verdadeiramente representativos da grei e não impositivos do poder absoluto, qualquer que seja a sua forma ou pretensa justificação. Com tudo isto, António Sérgio não se julgava um «estrangeirado» em sentido estrito. Procurava na história pátria, sobretudo nos sécs. XV e XVI, os homens e os momentos que lhe pareciam ter algo do seu próprio ideário e aspirações, algo da grande razão constituinte e libertadora, algo do «método» eficaz e do discernimento crítico, algo que ilumina a treva e irrompe na luz estabelecendo novas relações de inteligibilidade e novas normas de exactidão, de justiça e de valor: o Infante D. Henrique e a sua plêiade de navegadores, Duarte Pacheco Pereira, D. Francisco de Almeida, o autor da Ropica Pnefma, Garcia de Orta, Pedro Nunes, Francisco Sanches, Duarte Ribeiro de Macedo, L. A. Verney, Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, A. Herculano e A. de Quental, sobretudo. Idealista mas promotor da análise experimental e do concreto, racionalista mas nada desdenhoso da imaginação criadora, individualista-personalista mas veemente propugnador da dessubjectivação, libertário mas denodado incentivador da educação pela responsabilização, autonomista da consciência e dos grupos associativos mas assumindo e subsumindo na dinâmica da Razão transcendental e no Pacto, que deve qualquer sociedade mais larga e qualquer verdadeiro consenso da Humanidade, todas as consciências e factos particulares, tal nos aparece António Sérgio um dos nossos mais lídimos senão o mais lídimo escritor de ideias.

 

In: Verbo: enciclopédia luso-brasileira de cultura. Lisboa: Verbo, D.L.1983. Vol.16, p. 1807-1809.